CRATO & CULTURA: UM MARTELO AGALOPADO
Há um Crato pulsante em cada canto,
Há um canto fervente em cada Crato,
Há o Crato passado do retrato,
Há o Crato presente do espanto,
Há o Crato profano e o Crato santo,
Há um Crato de mel de um rio salgado,
Há o Crato matuto e o letrado,
Tem o Crato burguês do caviar,
Tem o Crato do angu e do preá
Que só canta martelo agalopado
JOSÉ FLÁVIO VIEIRA¹
Médico, escritor e membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais.
A trajetória cultural da Vila Real do Crato, de colonização tardia, despontando com o século XVIII, sempre foi marcada pelo pioneirismo. Basta lembrar os movimentos libertários republicanos seminais de 1817-1824 que teriam tornado a cidade, no dizer de Irineu Pinheiro (1881-1954), o mais importante município brasileiro neste período.
Esta evolução político-econômica emparelhou-se com uma efervescência cultural que terminaria, historicamente, por rotular a Vila de Frei Carlos com o pretensioso, mas merecido epíteto de “Cidade da Cultura”. Imantado desta vocação, que aos poucos se foi tornando uma predestinação, o Crato não só se tornaria uma manancial de artistas e artesãos, mas sua força gravitacional atrairia, para os pés da Serra do Araripe, um sem número de outros filhos adotivos. Bebendo das encantadas águas do Rio Grangeiro, daqui sairiam às vezes fisicamente, mas nunca mais nos abandonariam sensitivamente: Luiz Gonzaga (1912-1989), Patativa do Assaré (1909-2002), Ronaldo Correia de Brito, Nonato Luiz, Nego, Bruno Pedrosa, Sinhá D´Amora (1906-2002), Rosemberg Cariry. Para divisar, com mais clareza, este tortuoso caminho, é preciso mergulhar um pouco nas ínvias veredas percorridas pela vila, nestes dois séculos e meio de existência.
PRÉ-HISTÓRIA
Dos nossos Cariris, os primeiros herdeiros dessas terras, pouco ficaria. Seriam dizimados sistematicamente à vista e, depois, a prazo: os últimos remanescentes seriam expulsos em 1779 para Parangaba, para o extermínio lento e gradativo. Ficaram, entre nós, apenas indícios de sua cultura no nosso sangue, nas pinturas rupestres, nas cerâmicas, nos artefatos de guerra e do uso cotidiano. O colonizador branco (proveniente de Sergipe, Pernambuco, Alagoas, Bahia) e o escravo africano viriam impelidos pelos ciclos do couro e da cana de açúcar e aqui temperariam o nosso caldo étnico com seus folguedos, sua dança, sua arquitetura, sua música, suas peças artesanais.
1800-1850
A partir do século XVIII, a antiga Vila de Frei Carlos paulatinamente se firmaria como capital do sul-cearense. Inúmeros viajantes e homens de ciência por aqui passaram, como Manuel de Arruda Câmara (1752-1810), Ayres de Casal (1754-1821), Felipe Patroni (1798-1866). A cultura de tradição começaria a ter uma maior visibilidade. Em 1838, o médico-botânico escocês George Gardner (1810-1849), aqui esteve, participaria da Festa de Nossa Senhora da Conceição e descreveria a banda cabaçal (“dois pífaros e dois tambores tocando música da pior categoria”). No último dia da novena presenciaria “uma dança de mascarados em frente à igreja e exibições de pau de sebo”. Nesta primeira metade do século XVIII, dois poetas eruditos cantaram nossa terra: Bernardino Gomes de Araújo (1811-1879) e Manuel Ludgero de Carvalho Paz (1794-1876).
1851- 1900
A segunda metade do século XIX ser-nos-ia pródiga. Em 1855, João Brígido dos Santos (1829-1921) inauguraria aqui o primeiro jornal do sul-cearense: “O Araripe”. O hebdomadário teria periodicidade regularíssima por quase dez anos. Os semanários também passaram a ser publicados: “Gazeta de Notícias” (década de 1850); “A Liberdade” (1861); “A Voz da Religião no Cariri” (1869-1870) do Padre Mestre Ibiapina (1806-1883); “Vanguarda” (final dos 1870). Os jornais se dividiriam politicamente entre conservadores e liberais, mas abririam espaço para a literatura. João Brígido seria o nosso primeiro cronista histórico, pesquisando acuradamente a história caririense. Na década de 1850, tivemos, também a inauguração da nossa primeira casa de espetáculos, o “Teatro de Todos os Santos”, encabeçada pela “Sociedade Melpomenense de Teatro”. No final de 1859, início de 1860, esteve nos visitando a “Comissão Científica de Exploração” que trouxe, entre os cientistas, para nosso convívio, o poeta romântico Gonçalves Dias (1823-1864). Viria, ainda, o grande pintor José dos Reis Carvalho (1798-1892), aluno de Debret, que debuxaria o primeiro registro iconográfico de Crato.
Um passo importantíssimo na vida cultural da cidade seria a abertura do Seminário São José (1875), brotando aqui o primeiro curso secundário em todo o interior cearense, atraindo estudantes, formando mentes e corações. Por esta época teríamos ainda montada a nossa Banda de Música Municipal (1880). Reuniões literárias e saraus aconteciam nas nossas boticas, os centros de convenção da época. Nas boticas do poeta e escritor José Alves de Figueiredo (1878-1961), do Coronel Joaquim Secundo Chaves (1828-1902) e de Benedito Garrido (1781-1884) trafegavam boêmios, poetas como Zé de Matos e Antônio Lobo de Macedo - Lobo Manso (1888-1960). O ensino da música encetaria com as escolas de Branca e Airton Bilhar. Em 1890, o Nordeste teria uma eterna dívida para com o Crato, ao ver formada, em Salvador, a primeira médica nordestina, a cratense Amélia Benébien Perouse (1860-1953).
1901-1950
O início do século XX traria ao Crato o juiz pernambucano Manuel Soriano de Albuquerque (1877-1914) que fundaria o grupo teatral “Romeiros do Porvir” (1901), que dominaria a primeira década deste século e faria nascer a primeira diva do teatro cratense - Fantina Ayres. Nos anos 40, o cratense Waldemar Garcia (1904-1985), depois eleito a figura mais importante do teatro no Ceará no século, daria à luz ao Grupo de Teatro Amadores Cratense (GRUTAC), que nos impulsionaria as artes cênicas nas duas décadas seguintes. Nos primeiros anos do século XX, também surgiriam os nossos primeiros fotógrafos não itinerantes que, a partir da segunda década, passaram a registrar cenas cotidianas e paisagens urbanas, entre eles: Luiz de Gonzaga Martiniano da Costa, Pedro Maia e Júlio Saraiva. A memorialística, uma das nossas mais fortes modalidades literárias, veria nascer seus nomes mais preciosos: Tomé Cabral (1907-1988), J. Alves de Figueiredo Filho (1904-1973), Irineu Nogueira Pinheiro (historiador meticuloso), Martins Filho (1904-2002), Padre Antônio Gomes de Araújo (1900-1989), nosso maior historiador, Paulo Elpídio Martins e Miguel Limaverde (1882-1944), nem todos cratenses de origem, todos de coração. Na poesia viria despontar nomes inesquecíveis como o letrista do nosso hino, Martins D´Alvarez (1903-1993), José Bizerra de Brito (1878-1973), Pedro Felício (1905-1991), J. Calíope, José Alves de Figueiredo (1878-1961) que transitaria também, com desenvoltura, no conto e na crônica, Cego Aderaldo (1878-1967). J. de Figueiredo Filho daria uma contribuição fundamental na catalogação e registro das nossas manifestações de Cultura de Tradição, envolvendo-se ainda na pesquisa histórica. Muitas outras instituições educacionais apareceriam nestas primeiras décadas, como os colégios Diocesano (1916), Leão XIII, São José e Santa Tereza de Jesus (1923). Em 1911, o italiano Victor Di Mayo inauguraria, em Crato, a primeira sala de cinema do interior cearense, o “Cinema Paraíso”, apenas 16 anos depois da invenção dos irmãos Lumière. Outras a seguiriam: o Cassino Sul-Americano (1918) e o Cine Moderno (1934). O cinema influenciaria, profundamente, as gerações seguintes, encantando e formando incontáveis cineastas. A música nos daria o virtuosismo de Ida Bilhar (1886-1928), Chaguinha, Padre Davi Moreira e as batutas dos maestros Zé Chato, Luiz Benício, Arnaldo Salpéter, Joaquim Cruz Neves (autor da música do nosso hino) e Chico Baião. As artes plásticas teriam no cratense Vicente Rosal Ferreira Leite (1900-1941) um nome de representação nacional. Criaram-se neste início de século, as nossas primeiras instituições culturais: a União Artística Beneficente (1918), o Crato Tênis Clube (1933). A Rádio Amplificadora (1937) antecederia a chegada arrasadora do radiofonia que teve o pioneirismo dos Diários Associados na criação da Rádio Araripe (1950). Muitos periódicos nasceriam, como o “Cidade do Crato”, “Sul do Ceará”, “O Araripe”, “Gazeta de Notícias” , “Correio do Cariry” e “A Ação”.
1951- 1980
O amanhecer dos anos 50 fortaleceria a institucionalização da Cultura cratense com a fundação da Sociedade de Cultura Artística do Crato (1950) que para cá carregaria o grande maestro Arnaldo Salpéter. Logo depois, grupos intelectuais cratenses, encabeçados por Irineu Pinheiro, formatariam o Instituto Cultural do Cariri (1953) que congregaria escritores, historiadores, pesquisadores e memorialistas da nossa região como F. S. Nascimento, Padre Antônio Gomes, J. de Figueiredo Filho, Dr. Raimundo Borges (1907-2010), Jurandyr Temóteo, Olival Honor, J. Lindemberg de Aquino, Huberto, Tomé Cabral e tantos outros; com a publicação periódica da Revista Itaytera, o ICC centralizaria e registraria as publicações especializadas. A democratização do ensino da música erudita, tornando-a acessível aos pobres e camponeses, viria, em 1967, com o erguimento da SOLIBEL pelo Padre Ágio Moreira. Em 1991, sob a batuta de Mestre Elói Teles (1936-2000), seria alicerçada a Academia de Cordelistas do Crato que tem contribuído para a preservação e a evolução da nossa poesia popular. A criação da Faculdade de Filosofia do Crato (1960) que seria o embrião da Universidade Regional do Cariri (1986), valorizaria os intelectuais em atividade e formaria as futuras gerações de artistas e pesquisadores. A literatura ganharia renome nacional com escritores como Fran Martins (1913-1996), Padre Antônio Vieira (1919-2003). Nas artes plásticas viriam despontar artistas de abrangência internacional como Sérvulo Esmeraldo, Bruno Pedrosa, Dona Ciça do Barro Cru (1915-1994), Walderedo Gonçalves (1920-2005) e Geraldo Simplício - Nego. Ainda na metade dos anos 1960, Célio Silva e Francisco Correia Silva, o Correinha (1940-2008) lançariam nossos primeiros discos em vinil. Manuel Augusto dos Santos - Maestro Azul (1921-1991), Hugo Linard e Hildegard Benício embalariam festas e uniriam corações. Aos poucos, os revolucionários anos 60 trariam os ventos da renovação, desenvolvendo-se, junto ao movimento estudantil, que remodelou as artes cênicas, uma cultura underground que redundaria no jornal “Vanguarda” e depois no “Folha de Pequi”, nosFestivais da Canção do Cariri (anos 70), nos Salões de Outubro, na “OCA” e no “Grupo de Artes Por Exemplo”. Este movimento setentista pode ser considerado a nossa Semana de Arte Moderna, daí nasceriam poetas inspiradíssimos como Geraldo Urano, Bebeto Cabral, Francisco de Assis Souza Lima, Ana Cecília Bastos, Everaldo Norões, escritores de nomeada como Ronaldo Correia Lima, Emerson Monteiro, J. Flávio Vieira, José do Vale Feitosa Filho, Geraldo Ananias e Xico Sá. O cinema se esbaldaria com os cineastas: José Hélder Martins que faria o primeiro longa cearense, “Padre Cícero” (1976); Ronaldo Brito, autor do primeiro longa em Super 8 do Brasil, “Lua Camará” (1977); Rosemberg Cariry; Dedê Conrado; Hermano Penna; Jefferson Albuquerque; Jackson Bantim. Entre os artistas plásticos, destacaram-se Normando Rodrigues e Edélson Diniz. Esta geração formataria ainda aquilo que se tornou o mais autêntico na música genuinamente caririense, com Abidoral Jamacaru, Luiz Carlos Salatiel, José Nilton Figueiredo, Tiago Araripe, Cleivan Paiva, João do Crato e Pachelly Jamacaru. Todos estes artistas continuam vívidos e atuantes, inspirando e referenciando as novas gerações.
A Cultura de Tradição, exemplo de resistência inconteste, manteve-se incólume ante todos os obstáculos que historicamente enfrentou. Bandas cabaçais, reisados, cocos, maneiro paus, cordel, maracatus e seus mestres gloriosos como Anicetos, Aldenir, Cirilo, Dedé de Luna (1928-2002), para citar apenas alguns, como um exemplo de adaptação, se foram moldando e reestruturando, acompanhando a mobilidade incessante da vida. A indústria cultural, com as gélidas regras do consumo, vem tentando empalhar a Cultura de Tradição, transformando-a em mero folclore, fossilizando-a, afastando-a da sua alma brincante e do cotidiano das pessoas. Para tanger essa assombração e por ordem no terreiro, é preciso chamar a matraca do Jaraguá desse reisado e ela se chama Política Cultural.
É fácil perceber, assim, porque, no dicionário de “Cearensês”, Crato é sinônimo de Cultura. É bom, no entanto, não esquecer que, como nossa verdejante Serra do Araripe, a história é formada de placas sedimentares. Como vimos, lâminas grandiosas e sólidas foram se interpondo ao longo do tempo, abaixo da nossa superfície. Por um lado, é imprescindível perceber a importância destes sedimentos, são eles que nos servem de alicerce e de escada para chegar aos píncaros, mas na inevitabilidade do curso da vida e das horas, estão, inevitavelmente, soterrados. Hoje, no cume, podemos ver mais longe, por conta do trabalho incessante de gerações e mais gerações que nos permitiram a ascensão, colocando cada uma o seu degrauzinho. Nossos olhos, delicadamente úmidos de passado e de presente, precisam, no entanto, divisar os pináculos que ainda virão. À frente estão eles, desafiadores, lépidos, cavalgando em martelo agalopado, cumulados profundamente de infinito.