Inventário e Cartografia Cultural do Crato
No Cariri Cearense localiza-se a maior parte da Chapada do Araripe, uma formação rochosa que se destaca na paisagem da fronteira sul do Ceará com os Estados do Piauí, Pernambuco e Paraíba. A Chapada converge os ecossistemas da Mata Atlântica, Caatinga e Cerrado, possui inúmeras fontes de água e está legalmente protegida por uma Floresta Nacional (1946), uma Área de Proteção Ambiental (1997) e também um Geopark (2006), por ser o depósito de fósseis mais importante do Brasil e um dos 10 maiores do mundo.
Um oásis cercado pela aridez do sertão, antes da chegada dos colonizadores europeus, o vale verde nas encostas da Chapada era percebido como a “Terra do Encantado”, o paraíso dos índios Kariris, o território mítico de Badzé, o Deus do Fumo e Civilizador do Mundo, conta o cineasta Rosemberg Cariry. Capistrano de Abreu escreveu que os Kariris se diziam originários de um “lago encantado” e assenhoreavam terras do Rio São Francisco na divisa com a Bahia até o Rio Iapicuru no Maranhão. “Terrível a resistência dos Cariris, talvez a mais persistente que os povoadores encontraram em todo o país”, para vencê-los foram necessários ataques nos rios São Francisco, Piranha, Jaguaribe e Parnaíba por gente de São Paulo, Bahia, Pernambuco, Paraíba e Ceará, anotou o eminente historiador.
De acordo com a literatura, os colonos cristãos teriam se apossado do Vale do Cariri na última década do século XVII, quando uma bandeira proveniente da Bahia, chefiada pelos irmãos Lobato Lira, um padre e um frade capuchinho vislumbrou a cachoeira de Missão Velha, iniciando a redução das etnias indígenas e a escravidão das pessoas de pele negra. Logo o reduto mais próspero veio a ser a Missão do Miranda, onde a civilização do boi, do couro e da rapadura foi laborando as identidades culturais. Em 06 de agosto de 1763, este povoado foi transformado na Vila Real do Crato, oficialmente inaugurada em 21 de junho de 1764.
Em relação à toponímia, estudiosos defendem que a escolha do nome “Crato” vem de uma referência ao vilarejo português homônimo localizado no Alentejo, construído sobre as ruínas da antiga povoação de Ucrate ou Ocrate. Crato pode advir da corruptela de Curato, pois de 1737 a 1750 o aldeamento foi chamado de Curato de São Fidélis de Singuaringa (Fiel de Sigmaringa) pelo capuchinho fransciscano Frei Carlos Maria de Ferrara (1707-1774), considerado o fundador da cidade. Os populares dizem que “Crato” remete à cratera onde a urbe foi assentada.
Desde os primórdios, o Crato veio a configurar-se como um dos epicentros econômicos do nordeste, proeminente pelo desenvolvimento cultural e a mobilização político-social dos moradores. Diversos levantes locais confrontaram os poderes constituídos, o de maior expressão o ingresso de parte dos moradores na Revolução Pernambucana de 1817, liderados pela heroína Bárbara de Alencar (1760-1832). Há 200 anos, em 03 de maio de 1817, após entendimentos com lideranças no Recife e em Fortaleza, a matriarca, os filhos, alguns aliados políticos e escravos sublevaram a população, proclamando dentro da Igreja da Sé a independência do Brasil e uma República que teve a efêmera duração de oito dias, logo sufocada pelas tropas monarquistas.
Em março de 1823, partiu do Crato o batalhão de 2 mil homens de José Pereira Filgueiras (1758-1825) e Tristão Gonçalves de Alencar (1789-1825), que combateu em Oeiras (PI), no Maranhão, derrotou portugueses, separatistas e garantiu a integridade do território nacional após o grito da Independência. O Crato é a terra natal do Padre Cícero Romão (1844-1934), onde o santo popular viveu a infância e a juventude, aprendeu as primeiras letras e recebeu instrução religiosa, mirando as práticas do lendário Padre Mestre Ibiapina (1806-1883), que por sua vez também morou no Crato quando menino, acompanhando o pai Francisco Miguel Pereira, um escrivão depois condenado à morte por liderar a Revolução Pernambucana no Ceará. Na virada do século XX, a cidade vivenciou de forma paradigmática o fenômeno político brasileiro conhecido como República dos Coronéis, quando os chefes partidários impunham o voto de cabresto e usavam milícias armadas de jagunços para desapearem os adversários do poder.
Geração após geração, beneficiados por terem nascido em um torrão ambientalmente rico e com alicerces culturais consistentes, os cratenses souberam continuar os saberes herdados, inventar e aprimorar os modos de fazer à luz das trocas, das descobertas, da crítica, dos experimentos tecnológicos e estéticos do tempo coevo. Na segunda metade dos século XIX o município já era socialmente percebido como uma Capital da Cultura e a noção foi sendo reforçada, na proporção de artistas e mestres que durante o tempo de vida expressaram a identidade da cidade que amavam, por meio das mais diversas linguagens artísticas.
Hoje, ao percorrer a zona urbana e os distritos rurais, a impressão é que a Arte e a Cultura estão por todos os cantos no Crato. Como é alegre o viver em um lugar onde os artistas e a beleza estão por toda parte! Entretanto, no caminhar por este campo de encantamento, o olhar depara com evidências de que o rico manancial não vem sendo cuidado como um bem comum, pois incontáveis danos também estão por toda parte, na forma de edificações de alto valor histórico danificadas, abandonadas e irreversivelmente arruinadas, mestres e brincantes das culturas populares desaparecendo como indigentes, saberes tradicionais descontinuados pelas novas gerações, artistas talentosos desestimulados pela falta de oportunidades e a impossibilidade de sobreviverem da sua atividade de criar.
É neste cenário de profundidade histórica, injustiças, desigualdades e conflitos que se inscreve a Cartografia Cultural do Município do Crato. A proposta iniciada pela Secult em 2013 procurou as referências culturais do território, proporcionar visibilidade para as artes e os artistas locais. A partir do Crato revelado, esperava-se colaborar para que as políticas públicas pudessem vir a nortear a implementação de marcos legais, formar redes e disseminar uma compreensão acerca das três dimensões da Cultura: a simbólica, a cidadã e a econômica.
O primeiro passo para consecução do objetivo cartográfico consistiu da organização de um seminário para nivelamento dos técnicos da Secult com especialistas da URCA. Após a definição da metodologia e do plano de trabalho, foi realizado o Inventário Cultural, por meio da produção de fichas descritivas do patrimônio natural e cultural, dos espaços físicos como museus e teatros. Simultaneamente, estimulou-se a todos que se sentissem parte da cultura local a procederem o autocadastramento no sistema de informações culturais do município.
De outubro de 2015 a outubro de 2016, mestres e brincantes de reisado, banda cabaçal, coco, maneiro pau, lapinha, artesãs e artesões, compositores, cantadores, instrumentistas, atores, atrizes, humoristas, artistas circenses, desenhistas, fotógrafos, xilógrafos, dançarinas, escritores, poetas, cordelistas, artistas plásticos, produtores e gestores preencheram fichas na Secult ou pelo endereço http://cartografiacultura.wixsite.com/cartografiacultura. Os levantamentos foram complementados com pesquisas de campo, quando equipes da EEEP, Pró-Reitoria de Extensão e LABGEO URCA prospectaram o patrimônio natural, as entidades e as práticas culturais sustentáveis.
Após a transcrição e tratamento das informações, os registros colhidos foram sintetizados em verbetes com identificação, síntese descritiva, localização, formas de contato e fontes, agrupados em categorias consolidadas pela empiria da base de dados. Pesquisadores, historiadores, jornalistas, intelectuais, artistas, comunicólogos e poetas foram convidados a escrever entradas analíticas e colaborar para a interpretação dos dados, cuja publicação foi viabilizada na forma de livro pela Reitoria da URCA. Neste percurso, a Cartografia assumiu sua conformação definitiva de três eixos culturais estruturantes, com 382 registros classificados em 14 categorias e 11 segmentos, com o respectivo quantitativo, especificamente:
Tabela 01 - A Cartografia em números
A categoria “Linguagens Artísticas” relaciona os cidadãos e as cidadãs que se autocadastraram, classificados em 11 segmentos: Artes Visuais, Audiovisual e Fotografia (22); Artesanato e Design (08); Artes Cênicas (29); Grupos e Companhias Cênicas (14); Literatura, Cordel e Poesia (25); Luthier (01); Memorialistas (07); Música (35); Bandas e Coletivos de Música (06); Produtores e Gestores Culturais (17); Tradição (24). A categoria “Grupos de Tradição” contempla Banda Cabaçal (04), Coco (04), Lapinha (02), Maneiro Pau (06), Reisado (08) e a Banda Municipal.
Na 1º edição, a Cartografia apresenta 170 referências numeradas e um mapa impresso encartado, com a espacialização dos Eixos I, II e dos Espaços de Cultura atuantes no território. O projeto consumou também uma página no sítio da PMC, onde visitantes podem criar mapas digitais temáticos relacionando eixos e categorias, agrupadas em função de limitações do programa gratuito utilizado. Ainda pela internet, munícipes podem enviar novos registros ou atualizar seus verbetes.
A Cartografia fornece subsídios para pesquisas, políticas, produção, gestão, difusão científica, artística e cultural. Em anexo, foram apensadas as leis municipais da Cultura e o Memorial de Atividades da Secult de 2013 a 2016, para que as ferramentas da ação cultural possam estar acessíveis em um só volume, para fins de documentação e validação dos direitos conquistados pelos moradores.
Crato, 21 de junho de 2017
Rosiane Bezerra de Oliveira – Dane de Jade
Organizadora da Cartografia Cultural do Crato
Coordenadora do Escritório Regional de Cultura do Cariri / Secult Ce